Aí que preguiça! Todos os momentos são transparentes quando não pensamos neles. Passar ao lado dos minutos. Pontapear o tempo. Açoitar o movimento. Rebolar a agitação para fora do colo. Comer o silêncio às fatias. Caminhar, caminhar sem parar e sem sair do lugar, porque todos os lugares são o mesmo lugar. Esticar os braços e as pernas até ao infinito à espera que sejam acordados pela inércia. Fechar as persianas aos olhos e tocar o escuro com as pestanas. Aí a preguiça, a mãe das artes e das virtudes nobres, o bálsamo das angústias humanas, à boa maneira do irreverente manifesto do Paul Lafargue. Já podes abrir os olhos, faz um intervalo. Um momento de pausa em boa companhia, enquanto o peito recupera o ritmo normal e o coração volta a fervilhar num ritmo alucinante. Bang bang!
terça-feira, 29 de abril de 2008
quarta-feira, 23 de abril de 2008
O alimento da fantasia
A minha fome tem estranhos caprichos. Muitas das vezes só me aparece depois de comer (Nietzshe, in Assim Falava Zaratustra). Quando o vento transporta as palavras num olhar intermitente, a vida é consumida em tacinhas pequenas de porcelana chinesa. A voz enrola-se no garfo e guarda no seu interior a frieza de uma lâmina, que corta às fatias o som dos desígnios da perdição. O intenso perfume a canela contagia a colher, deixando transparecer um espelho que revela os desejos do pensamento. Como se fosse possível sorver a liquidez da cereja que bebo às escondidas.
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Laranja orgânica
Para lá dos gomos azedos, há uma laranja com sumo açucarado que adoça as bocas amargas. Os caroços indicam que está na hora de a provar A casca é feita de cetim, escorrega nos dedos. Prefere as mãos às facas. Prefere os lábios aos copos. E se alguém disser que é ácida, borrifa-nos impiedosamente com a sua ânsia. É que o doce a mais enjoa e o amargo entristece.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Olha o robot
Um ser humano igual sob todos os horizontes será um robot sem personalidade, um ser humano vazio de identidade (Michel Renaud). As novas máquinas cibernéticas procuram imitar o comportamento do cérebro humano, baseado no imaginário da imperfeição do ser humano e na crença da técnica como a única solução para o crescimento da complexidade civilizacional. Entraremos nós neste ciber autocarro telecomandado por tão temível condutor, ou ficaremos à espera de que o Ulisses regresse, concluída a viagem? O homem por muito que se tenha tornado um estranho na natureza, as mudanças sociais tornaram-no ainda mais estranho dentro do próprio mundo social. Depois de criar deuses, o homem não tem o poder de os conservar, a menos que, tal como Fausto de Goëthe, venda a alma ao Diabo em troca da imortalidade do corpo. Em torno dos vários domínios de interacção entre a corporeidade e as possibilidades materiais de incorporação, o corpo assume-se como um acessório (ter) em detrimento da pessoa (ser). Virtualizam-se experiências sensoriais, fundam-se paraísos do nada. Neste habitat da civilização tecnológica, a sociedade humana tende cada vez mais a parecer-se com um formigueiro. Are you came to play? Game over....
quinta-feira, 10 de abril de 2008
Opiáceo
Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do lírio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso em ti. Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto – aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo baixinho: Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge. (Al Berto in Lunário)
terça-feira, 8 de abril de 2008
A mentira que era coxa
Todos os dias, à mesma hora, a mentira saía de casa, calçava os sapatos de verniz preto, vestia o casaco a três quartos, acertoado à frente, pegava numa maçã e apanhava o eléctrico para não chegar atrasada ao trabalho. Passaram-se dias, semanas, meses e anos e à medida que o tempo passava a mentira ia crescendo. Crescia crescia crescia, esticava esticava esticava, até ao limite. Os sapatos de verniz preto ficaram demasiado apertados, o casaco curtinho, encolhido e em vez de uma maçã, a mentira, levava consigo duas maçãs. Sempre a muito custo, a mentira retomava os seus afazeres diários, com esperança de que um dia a verdade pudesse ser constituída e aí poderia voltar a ser quem era. Mas a sorte não estava do seu lado, a mentira continuava a crescer sem fim. Uma das suas pernas ganhou proporções incontroláveis. Arrastava-se para apanhar o eléctrico. A mentira desesperada, chorava dias a fio, via a sua vida desfeita em estilhaços no tapete. O desconsolo era tanto que perdeu o apetite, fechou-se em casa, vestiu um pijama e fechou os olhos com tanta tanta força, por tempo indeterminado. Ao abri-los mais tarde, debruçada sobre si, mirou-se de alto a baixo e explodiu de alegria. Nada mais restava da sua perna coxa, a não ser um resto de saliva de memórias atiradas na pequena solidão dos murais da inconsciência. O êxtase estava em correr, sem nunca mais ter de se esconder. Até hoje ferve, queima por dentro e por fora.
domingo, 6 de abril de 2008
Estou onde não deveria estar
Que podemos sonhar quando temos consciência de que o nosso sonho se evaporou? Quando já não esperamos mais nada, somos somente as histórias que arrastamos dia a dia, tudo aquilo que não compreendemos. Regra básica, nunca pronunciar a palavra amor diante de um homem, sobretudo numa língua estrangeira porque julgamos que soa melhor dito assim. Sempre pensei que o que ia acontecer a cada minuto que passava traria consigo todas as respostas só pelo simples facto de existir. Mas não, fui traída pelas palavras não ditas. Fiquei às escuras uns bons segundos, apenas três janelinhas de madeira deixavam entrar um pouco de luz naquele quarto de hotel. As casas depois do crepúsculo têm outro aspecto. Tornam-se estáticas, paralisadas, carcomidas pela inércia. Os viajantes diários dos subúrbios que passam a correr pelas suas vidas, começavam a desaparecer-me do campo de visão. Os meus sentidos estavam embotados. Abatida pelo calor, estiquei-me na cama, fechei os olhos por breves instantes, ali fiquei a pensar naquele barzinho de bairro, onde estivera há instantes a beber um licor adocicado e delicioso e que me provocara uma sonolência abrupta. Vieram-me à memória aquelas personagens que entraram e sairam vezes sem conta, mas somente duas fixaram a minha atenção. Ao balcão estava uma mulher sozinha, bebia whisky despreocupadamente. Tinha a pele muito branca e o cabelo muito preto, que contrastava com uma espessa camada de rímel e os lábios muito vermelhos, deixava entrever o decote e a renda branca do corpete que trazia debaixo do casaco. Há mulheres com e sem sedução e ela tinha-a. De olhos melancólicos, talvez, ou tristes, semicerrados, havia um homem impecavelmente vestido de preto, esboçava umas feições atrevidas e o seu sorriso sedutor alastrava-se até a mulher. Não falaram, apenas trocaram olhares e golos de bebida em uníssono. Acabamos por acreditar que são os atalhos do destino ou os caminhos retorcidos do nosso esforço em querermos ser felizes. Pensamos em viagens, crimes e aventuras e afinal os homens não gostam da palavra sempre, faz-lhes medo. Os homens têm todos medos estranhos.
quinta-feira, 3 de abril de 2008
Sem pedir permissão
A lâmina turbulenta da língua corta as palavras aos quadradinhos. Inspiro e expiro um sorriso feito de pedaços de letras recortadas com sabores diversificados. Fujo para dentro do corpo porque o calor tem asas de mel. Os beijos mascaram-se de azul turquesa como pingos de amanhecer junto ao céu. Os suspiros invadem as migalhas das pedras, soltas pelos pés descalços. Enquanto as mãos trocam segredos, a luz dá de beber aos soluços da euforia. Conscientes de que respiram, deixam a sabedoria química actuar. Se fores um cisne selvagem, mergulha até às entranhas do fogo labiríntico que lambe os meus pés. Na superfície da pele, amanso as feras da tua alma e deito-me com elas.