quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O natal dos afectos

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Os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção. (Ana Hatherly, in Tisanas)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O corpo do tempo

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O tempo tem um corpo que vive fora da alma do homem. Habita nos degraus dos segundos quando os minutos sobem as escadas à pressa. Se às horas lhes despirmos os dias, o corpo do tempo arrefece. Deitado de barriga para cima, espera que os meses se deitem lado a lado. Quando está triste sopra para fora do relógio. Quando está feliz pede aos ponteiros que o abracem.

La beauté du geste

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As pingas de chuva marinam os dias enxutos. Aqui, neste mundo de papel virtual onde construímos aquilo que somos, as palavras são servidas como se fossem bolachas. No meio deste inverno gelado, enquanto vagueio ao sabor dos teus lábios indomáveis, permaneço abraçada aos teus olhos intensos, folhas enraizadas, com o sorriso das estrelas junto à liberdade do mar. Encanta-me a cor do crepúsculo a apagar-se com o dia. Quando a noite calma chegar, abro os olhos e entrelaço os meus dedos nas tuas mãos e volto a fechar os olhos. Às vezes queria ser uma das tuas pestanas, para o brilho do olhar ser o meu sol que nascia de manhã para à noite se pôr e dar lugar ao sonho.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Dentro de mim habita um grito

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Nos braços da tarde encardida, que inspira e expira amor, procuro-te por entre as prosas doces que atravessam as palavras. Tenho a mente despida pelo teu reflexo. Sussurro-te ao coração pedaços de mim em papel. Quando o céu estiver cinzento, adorno-te com os meus cabelos que entram pela janela mal fechada. A música ao longe, desce em camadas pelos ombros e vem aquecer-me ao perto.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Os jardins de luz

Perdi-me no calor dos teus abraços e encontrei-me no calor dos teus beijos. La bohème, la bohème a voulait dire tu es jolie.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O primeiro tango em Paris

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Sob as perpétuas estrelas de Montmartre, que abafam o clamor do mundo, dança comigo no silêncio dos teus braços. Sussurra-me ao ouvido poesias desses véus de vultos que o olhar envolve e eleva, para que possa aprisionar o meu reflexo nos teus olhos profundos. Despe a minha alma em minutos compassados e perde-te nas minhas mãos suadas pelos longos abraços intemporais. Bebe o veneno que te ofereço pelos meus lábios de sangue intenso. Dança comigo nos acordes dos meus sentidos, envoltos nos tentáculos do mundo visível e invisível. Quebra os vidros de todas as manhãs calmas e latejantes em todos os bancos de jardim que esperam a noite toda. "Dance me very tenderly and dance me very long...to the end of love."

segunda-feira, 14 de julho de 2008

O abissal esconderijo das pequenas coisas

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Rondaste o meu castelo solitário como um rio de vozes e de gestos. Baixei as minhas pontes fatigadas e conheci os teus lumes, teus agrados, teus olhos de ouro negro que confundem, andei na tua voz como um rio de fogo e mel e raros peixes belos. Cheguei na tua ilha e atrás da porta deste-me o banquete dos teus ardores.(Lya Luft in Secreta Mirada)

sábado, 5 de julho de 2008

Como água para chocolate

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Se souberes respirar nas esquinas de veludo, deita-te nas paredes e desenha vincos nas fendas do teu corpo. Bebe do que te é dado a beber. No ar saturado pela saliva, apenas fica a alma negra do silêncio. Num verão emparedado, o calor é devolvido ao corpo, despedaçado por um grito de desespero. O sangue de chocolate grita, explode nas artérias aos soluços. Os beijos caem como pingos de madrugadas geladas, encerrando as palavras. A plenitude de cada presença morde-me os sentidos.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Leve beijo mortal

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Há palavras que nos beijam. Como se tivessem boca. Palavras de amor, de esperança. De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas. Quando a noite perde o rosto. Palavras que se recusam. Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas. Entre palavras sem cor. Esperadas, inesperadas. Como a poesia ou o amor (...) Palavras que nos transportam. Aonde a noite é mais forte. Ao silêncio dos amantes. (Alexandre O'Neill in Poesias Completas)

terça-feira, 17 de junho de 2008

O que nos divide

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Vivemos habitualmente à superfície das bolhas do quotidiano, ligados ao que faz parte da vida imediata, encalacrados nas mil e uma futilidades com que nos enchem os dias grandes e pequenos. Perdemos as múltiplas almas nas tarefas menores do existir. Tudo se dilui num sentir que está encerrado através de noites obscuras e manhãs de nevoeiro. Antes e abaixo e mais longe do que esse tudo, há uma melodia envolvente que nos abraça invisivelmente. Quando se cultiva um espírito inquietante agarramo-nos aos galhos e abandonamos o tronco e o corpo.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A felicidade pasmada

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Dentro de um sorriso redondo, de olhos abertos e rasgados, habita uma felicidade pasmada. Debaixo do fato aprumado, subtilmente vincado e do vestido de seda grená, habita uma felicidade pasmada. Ao lado do coreto dos músicos, da tasca do tio Alfredo, da mercearia do segundo direito, habita uma felicidade pasmada. Os risinhos introvertidos bocejam em sintonia nas bocas das beatas que por ali passam aos magotes para a missa. No fundo da rua, as árvores encostam-se às casas e empurram-nas para fora das paredes. Dentro das casas, as pessoas sentadas frente à televisão, de bocas cosidas, cospem palavras já fora de prazo. No quarto dos fundos, a Dona Arlete passa todos os dias a ferro a felicidade pasmada da menina Maria. A caminho dos afazeres diários, tropeça-se constantemente nas emoções estáticas, paralisadas e botoxizadas pela ausência de sentimento. No reino do faz de conta, a felicidade, tornou-se um forma de dominação totalitária. Deixou de existir na sua forma natural, passou a ser comercializada em cápsulas seleccionadas sem receita médica recomendada. Por detrás da imagem do paraíso ficcionado, controlado e imposto colectivamente, a felicidade é pasmada. A culpa, está do lado da ambição verde e viscosa que habita os piores e os melhores de nós. Fantasias de democratização das relações pessoais que escondem um ideal de unidade absoluta. Uma tirania de sapos que devemos resistir para não nos afogarmos no charco.

domingo, 1 de junho de 2008

Por detrás das pálpebras

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Há uma orquestração no meu sangue de balburdias de crimes. De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares. Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito. Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez. E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!(Álvaro de Campos)

terça-feira, 20 de maio de 2008

O império dos sentidos

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Existe um tipo de gosto que nos aproxima imperceptivelmente do que temos à nossa frente, como se nos empurrasse para dentro dessa película transparente a que chamamos de pele. Movidos por uma força invisível que nos impele para, quase sem pestanejar, encerramos de mansinho o corpo na alma. Sem nos apercebermos, o poder dos sentidos ganha intensidade à medida que liquidamos o espaço entre um acontecimento e o que lhe sucede. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfacto cheira, o tacto apalpa, mas os olhos não se limitam apenas a olhar. Nesse mesmo corpo que eles conhecem, limitado e rodeado por tantas outras coisas, absorvem o sangue da alma e a tinta do coração, regressando onde tudo começa, à primavera dos sentidos.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Manhã submersa

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Adormeço aos bocadinhos para não acordar os sonhos. A pele estica as palavras e os sons ao mesmo tempo. Congelo o momento com a língua. Sussurro ao sangue de que está na hora de ir dormir. Ele está inquieto, agita-se, revolta-se, grita e contorce-se acabando por cair redondo no chão. Vencido pelo cansaço apaga-se ao de leve como um sopro de vela. O espírito acotovela-se dentro da carne à espera de um abraço. Se os vidros ainda estão selados é porque a manhã ainda não chegou. Quando chegar, ela que bata devagarinho para não acordar os sonhos, eles não gostam de ser incomodados.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O cortejo ingénuo dos nossos sonhos

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Não desenhamos uma imagem ilusória de nós próprios, mas inúmeras imagens, das quais muitas são apenas esboços, e que o espírito repele com embaraço, mesmo quando porventura haja colaborado, ele próprio, na sua formação. Qualquer livro, qualquer conversa podem fazê-las surgir; renovadas por cada paixão nova, mudam com os nossos mais recentes prazeres e os nossos últimos desgostos. São, contudo, bastante fortes para deixarem, em nós, lembranças secretas que crescem até formarem um dos elementos mais importantes da nossa vida: a consciência que temos de nós mesmos tão velada, tão oposta a toda a razão, que o próprio esforço do espírito para a captar a faz anular-se. Nada de definido, nem que nos permita definir-nos; uma espécie de potência latente... como se houvesse apenas faltado a ocasião para cumprirmos no mundo real os gestos dos nossos sonhos, conservamos a impressão confusa, não de os ter realizado, mas de termos sido capazes de os realizar. Sentimos esta potência em nós como o atleta conhece a sua força sem pensar nela. Actores miseráveis que já não querem deixar os seus papéis gloriosos, somos, para nós mesmos, seres nos quais dorme, amalgamado, o cortejo ingénuo das possibilidades das nossas acções e dos nossos sonhos. (André Malraux in A Tentação do Ocidente)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Estranhas formas de vida

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A estranheza dos amores e desamores convive lado a lado em casas separadas. Os afectos são partilhados em versão fast food e as emoções vendidas aos bocados com opção adicional qualquer ingrediente à escolha. Perdeu-se a simplicidade dos momentos. Os gestos são comprimidos ao máximo para aproveitar o tempo escasso. As palavras não se dizem para evitarem ilusões. Os pensamentos têm quase sempre a tecla do delete accionada. A paixão está fechada a cadeado e não se sabe da chave. O amor foi abandonado numa ilha inabitável. O fácil foi dificultado e o difícil facilitado. Quando tudo é convertido em processos mercantilizados, tudo perde o sentido e sabor. Quem tudo quer, tudo perde. Quem tudo ganha, torna-se rei e rainha de um castelo sem pessoas. Guardai-vos dos falsos profetas nascidos na púrpura, que vêm disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Preguiça: o ócio divino

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Aí que preguiça! Todos os momentos são transparentes quando não pensamos neles. Passar ao lado dos minutos. Pontapear o tempo. Açoitar o movimento. Rebolar a agitação para fora do colo. Comer o silêncio às fatias. Caminhar, caminhar sem parar e sem sair do lugar, porque todos os lugares são o mesmo lugar. Esticar os braços e as pernas até ao infinito à espera que sejam acordados pela inércia. Fechar as persianas aos olhos e tocar o escuro com as pestanas. Aí a preguiça, a mãe das artes e das virtudes nobres, o bálsamo das angústias humanas, à boa maneira do irreverente manifesto do Paul Lafargue. Já podes abrir os olhos, faz um intervalo. Um momento de pausa em boa companhia, enquanto o peito recupera o ritmo normal e o coração volta a fervilhar num ritmo alucinante. Bang bang!

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O alimento da fantasia

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A minha fome tem estranhos caprichos. Muitas das vezes só me aparece depois de comer (Nietzshe, in Assim Falava Zaratustra). Quando o vento transporta as palavras num olhar intermitente, a vida é consumida em tacinhas pequenas de porcelana chinesa. A voz enrola-se no garfo e guarda no seu interior a frieza de uma lâmina, que corta às fatias o som dos desígnios da perdição. O intenso perfume a canela contagia a colher, deixando transparecer um espelho que revela os desejos do pensamento. Como se fosse possível sorver a liquidez da cereja que bebo às escondidas.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Laranja orgânica

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Para lá dos gomos azedos, há uma laranja com sumo açucarado que adoça as bocas amargas. Os caroços indicam que está na hora de a provar A casca é feita de cetim, escorrega nos dedos. Prefere as mãos às facas. Prefere os lábios aos copos. E se alguém disser que é ácida, borrifa-nos impiedosamente com a sua ânsia. É que o doce a mais enjoa e o amargo entristece.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Olha o robot

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Um ser humano igual sob todos os horizontes será um robot sem personalidade, um ser humano vazio de identidade (Michel Renaud). As novas máquinas cibernéticas procuram imitar o comportamento do cérebro humano, baseado no imaginário da imperfeição do ser humano e na crença da técnica como a única solução para o crescimento da complexidade civilizacional. Entraremos nós neste ciber autocarro telecomandado por tão temível condutor, ou ficaremos à espera de que o Ulisses regresse, concluída a viagem? O homem por muito que se tenha tornado um estranho na natureza, as mudanças sociais tornaram-no ainda mais estranho dentro do próprio mundo social. Depois de criar deuses, o homem não tem o poder de os conservar, a menos que, tal como Fausto de Goëthe, venda a alma ao Diabo em troca da imortalidade do corpo. Em torno dos vários domínios de interacção entre a corporeidade e as possibilidades materiais de incorporação, o corpo assume-se como um acessório (ter) em detrimento da pessoa (ser). Virtualizam-se experiências sensoriais, fundam-se paraísos do nada. Neste habitat da civilização tecnológica, a sociedade humana tende cada vez mais a parecer-se com um formigueiro. Are you came to play? Game over....

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Opiáceo

Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do lírio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso em ti. Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto – aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo baixinho: Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge. (Al Berto in Lunário)

terça-feira, 8 de abril de 2008

A mentira que era coxa

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Todos os dias, à mesma hora, a mentira saía de casa, calçava os sapatos de verniz preto, vestia o casaco a três quartos, acertoado à frente, pegava numa maçã e apanhava o eléctrico para não chegar atrasada ao trabalho. Passaram-se dias, semanas, meses e anos e à medida que o tempo passava a mentira ia crescendo. Crescia crescia crescia, esticava esticava esticava, até ao limite. Os sapatos de verniz preto ficaram demasiado apertados, o casaco curtinho, encolhido e em vez de uma maçã, a mentira, levava consigo duas maçãs. Sempre a muito custo, a mentira retomava os seus afazeres diários, com esperança de que um dia a verdade pudesse ser constituída e aí poderia voltar a ser quem era. Mas a sorte não estava do seu lado, a mentira continuava a crescer sem fim. Uma das suas pernas ganhou proporções incontroláveis. Arrastava-se para apanhar o eléctrico. A mentira desesperada, chorava dias a fio, via a sua vida desfeita em estilhaços no tapete. O desconsolo era tanto que perdeu o apetite, fechou-se em casa, vestiu um pijama e fechou os olhos com tanta tanta força, por tempo indeterminado. Ao abri-los mais tarde, debruçada sobre si, mirou-se de alto a baixo e explodiu de alegria. Nada mais restava da sua perna coxa, a não ser um resto de saliva de memórias atiradas na pequena solidão dos murais da inconsciência. O êxtase estava em correr, sem nunca mais ter de se esconder. Até hoje ferve, queima por dentro e por fora.

domingo, 6 de abril de 2008

Estou onde não deveria estar

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Que podemos sonhar quando temos consciência de que o nosso sonho se evaporou? Quando já não esperamos mais nada, somos somente as histórias que arrastamos dia a dia, tudo aquilo que não compreendemos. Regra básica, nunca pronunciar a palavra amor diante de um homem, sobretudo numa língua estrangeira porque julgamos que soa melhor dito assim. Sempre pensei que o que ia acontecer a cada minuto que passava traria consigo todas as respostas só pelo simples facto de existir. Mas não, fui traída pelas palavras não ditas. Fiquei às escuras uns bons segundos, apenas três janelinhas de madeira deixavam entrar um pouco de luz naquele quarto de hotel. As casas depois do crepúsculo têm outro aspecto. Tornam-se estáticas, paralisadas, carcomidas pela inércia. Os viajantes diários dos subúrbios que passam a correr pelas suas vidas, começavam a desaparecer-me do campo de visão. Os meus sentidos estavam embotados. Abatida pelo calor, estiquei-me na cama, fechei os olhos por breves instantes, ali fiquei a pensar naquele barzinho de bairro, onde estivera há instantes a beber um licor adocicado e delicioso e que me provocara uma sonolência abrupta. Vieram-me à memória aquelas personagens que entraram e sairam vezes sem conta, mas somente duas fixaram a minha atenção. Ao balcão estava uma mulher sozinha, bebia whisky despreocupadamente. Tinha a pele muito branca e o cabelo muito preto, que contrastava com uma espessa camada de rímel e os lábios muito vermelhos, deixava entrever o decote e a renda branca do corpete que trazia debaixo do casaco. Há mulheres com e sem sedução e ela tinha-a. De olhos melancólicos, talvez, ou tristes, semicerrados, havia um homem impecavelmente vestido de preto, esboçava umas feições atrevidas e o seu sorriso sedutor alastrava-se até a mulher. Não falaram, apenas trocaram olhares e golos de bebida em uníssono. Acabamos por acreditar que são os atalhos do destino ou os caminhos retorcidos do nosso esforço em querermos ser felizes. Pensamos em viagens, crimes e aventuras e afinal os homens não gostam da palavra sempre, faz-lhes medo. Os homens têm todos medos estranhos.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Sem pedir permissão

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A lâmina turbulenta da língua corta as palavras aos quadradinhos. Inspiro e expiro um sorriso feito de pedaços de letras recortadas com sabores diversificados. Fujo para dentro do corpo porque o calor tem asas de mel. Os beijos mascaram-se de azul turquesa como pingos de amanhecer junto ao céu. Os suspiros invadem as migalhas das pedras, soltas pelos pés descalços. Enquanto as mãos trocam segredos, a luz dá de beber aos soluços da euforia. Conscientes de que respiram, deixam a sabedoria química actuar. Se fores um cisne selvagem, mergulha até às entranhas do fogo labiríntico que lambe os meus pés. Na superfície da pele, amanso as feras da tua alma e deito-me com elas.

domingo, 30 de março de 2008

Sonho de uma noite de verão

Strawberries cherries and an angel's kiss in spring. My summer wine is really made from all these things...(Ville Valo feat Natalia Avelon)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Branco momento

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O invisível momento da superfície calma das coisas, paira de braços abertos sobre o líquido inexistente de um corpo que se desvanece. A polpa dos sentidos esgravata levemente um querer incontrolável na boca que me persegue. Subir para depois descer. Descer para depois subir. Elevam-se pedaços de alma agarrados aos dedos. As unhas prendem-se à carne no momento de fusão. Se o sangue fervilha aos poucos, as veias em inquietação latejam um perfume purpurino. No branco momento, cai uma gota de aperto que perfura a pele e atira o corpo para o chão. O embate das costas no vazio do soalho abre uma cratera em espiral. O ranger da madeira sobe de tom sempre que o corpo se move. Uma força desconhecida reanima o corpo. De novo a pairar no infinito, seduz a quietude do momento e junta-se a ele numa brincadeira endiabrada sem fim.

Machine gun

Um dia deixas-me dormir no teu peito?

quarta-feira, 19 de março de 2008

Mar adentro

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Puxo as ondas do mar para dentro de mim, abraço-as com todos os sentidos. Perco-me na sua imensidão e venho ao de cima extasiada. Quando a areia me tenta comer, empurro-a com os pés para não ficar enterrada. Naquela luta corpo a corpo, o mar tornou-se o meu amante dedicado. As peles nuas, absorvem a bravia do mar pelas veias. Libertas das amarras que as prendem à terra molhada, conspiram desejos feitos da espuma dos dias. As ondas deitadas na areia, acotovelam-se umas às outras para roubarem beijos repenicados às rochas. As rochas vestidas com cetim branco, posam para a Lua junto à escada de madeira corroída pelo sol. Despidas outra vez, choram lágrimas de sal enquanto os olhos, procuram noutros olhos, um profundo mar adentro.

segunda-feira, 17 de março de 2008

A aurora (pós-moderna) de Eostre

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Nos ruídos tempestuosos produzidos pelo som da existência, Eostre estava sentada no muro, de costas voltadas para a metrópole, anestesiada pela poeira dos dias, quando um pássaro obscuro voou sobre ela. Debruçou-se sobre Eostre e disse-lhe ao ouvido: sou o celeiro dos pedaços colhidos ao longo das tuas trilhas percorridas. Incapaz de lançar um grito para dentro de si, Eostre deixou cair no chão as gotas de suor já avermelhadas. O pássaro pousou nas marcas da sua alma e transformou-se num coelho. Com o passar dos dias o coelho não estava feliz com a transformação, pois deixou de ouvir o eco fininho do chicote que rasgava diariamente a pele do coração. Até o aroma da paixão que adornava as auroras de todas as manhãs estava com os seus ponteiros parados. Na rasura dessa carne que arranca as árvores pelas raízes, só lhe restava esperar até que o Inverno passasse. Chocada pela luz do Sol, a Primavera chegou. No espasmo da luxúria, a Primavera absorveu de um só gole a vida ávida. Contracções involuntárias na sofreguidão alucinada da pele contra pele, que explode nas veias em todos os corpos, que trespassa o mundo e tem fome insana, desvairada. De volta a si, o pássaro agradeceu a Eostre, voltou a voar e depositou no céu ovos coloridos em sua homenagem. E nesse eterno buscar, havia de ser aurora todos os dias e todas as noites. E Eostre havia de voltar para encontrar o que deixou. A sua presença tatuada na pele que nos fere todas as Primaveras.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Ata-me

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O tédio dos dias longos seca-me os lábios. Passo os dedos por eles ao de leve com a esperança de encontrar ainda resquícios de calor. Mas estão inertes. Sequiosos à espera de uma gota de saliva quente. Tenho sede. Estico a mão, mas o copo está vazio. Atiro-o para o chão violentamente. Os estilhaços feriram-me a pele. Sorvo o sangue salpicado. Tem um sabor conhecido. Sabe a ti. Ata-me! Ata-me com as tuas palavras. Ata-me com a tua voz que me arrepia os sentidos. Ata-me com a tua língua que passa serpenteada na minha boca. Ata-me com o teu olhar que me prende. Ata-me!

domingo, 9 de março de 2008

I died for beauty

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Love, love is a verb. Love is a doing word. Feathers on my breath. Gentle impulsion. Shakes me, makes me lighter. Feathers on my breath. Teardrop on the fire. Feathers on my breath. In the night of matter, black flowers blossom. Feathers on my breath. Black flowers blossom. Feathers on my breath. Teardrop on the fire. Feathers on my breath. Water is my eye. Most faithful my love. Feathers on my breath. Teardrop on the fire of a confession. Feathers on my breath. Most faithful my love. Feathers on my breath. Teardrop on the fire. Feathers on my breath. Stumbling a little. Stumbling a little. (The Liminar - I Died for Beauty)

terça-feira, 4 de março de 2008

São rosas, senhor, são rosas

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O corpo deitado na relva respira devagar o aroma adocicado da manhã, para que entre compassadamente o primeiro tempo de uma valsa. Acorda a pensar em dias infinitos, em sorrisos lascivos e intermitentes. Eleva-se nas pontas de ambos os pés e sente o pulsar do coração nos lábios. Num andamento de 30 compassos por minuto, as palavras aveludadas sangram a língua. É como se tivesse a boca a saber a framboesas acabadas de colher. Fora de si, fora do corpo, em ondulações graciosas, um cheiro hipnotizante invadiu o nariz numa progressão suave e lenta. "São rosas, senhor, são rosas..." das memórias carmim que plantamos diariamente no chão.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Debaixo dos pés

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Perco-me para me encontrar. Encontro-me para me perder. Quando me encontro, volto a perder-me. Quando me perco, procuro encontrar-me. No caminho mais longo, encontro um mais perto. No caminho mais perto, vou pelo mais longo. Flutuo abaixo das camadas, degrau por degrau. Corro contra o tempo para sair. Quando chego à superfície, sopro-a violentamente para fora das grades. Empurro os muros para longe, para não me cairem em cima. Lanço uma escada para me segurar. Se tenho medo, tapo os olhos e olho para cima a seguir. Sento-me confortavelmente naquele pedaço de terra vazio e absorvo lentamente todo o ar que passa em sentido contrário. Se já escureceu, apanho boleia da lua. Se amanheceu, digo bom dia ao sol e ofereço-lhe um sumo de laranja. Vou descer, está na hora de ir trabalhar.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O vendedor de sapatos de algodão

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Talvez nem tenha nome. Ou sequer morada. Existe apenas no frémito da folhagem seca que caí das árvores aos magotes. Naquela rua estreita, sempre coalhada de gente e amarelada pelo tempo, habita um vendedor de sapatos de algodão. O seu riso é invisível, a sua voz é escura, o grito é de um pássaro que morde o bico por engano. As mulheres acotovelam-se e atropelam-se umas às outras para experimentarem os sapatos. Debruçadas em pontas nas suas formas paralelepípedas, caminham de cabeça erguida, sem verem que debaixo dos seus pés existem uns doces sapatos de algodão. Com tentáculos do mundo visível e invisível, os sapatos de algodão percorrem os pés nas calçadas empedradas, nas escarpas mais elevadas onde sombrios cavalos galoparam. Em ritmos lentos de violinos magistrais, o toque dos dedos delicados mistura-se com a seda carmim dos sapatos de algodão. Concubinos, viajantes de um mesmo sonho, abocanham em êxtase a pele que outrora os uniu.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A orgia da maçã

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Só se compreende bem uma época sentindo o seu odor. Inventamos um mundo cada vez que escrevemos. De facto, é cansativo querer dizer sempre a verdade de uma época. Os humores sociais e instintivos dizem mais do que muitos tratados científicos. A este Prometeísmo moderno está em vias de suceder a figura de Dionísio. Hedonismo ambiente, latente. Aquilo que for feito amanhã pouco importa, desde que se possa usufruir, aqui e agora. De facto o Dandismo é uma arte de viver feita de elegância, de prazer, de gozo, que conforta um ambiente erótico e que assegura a transição de um tipo de sociedade para outro. Momentos de intensidade dos quais sabemos, de uma maneira trágica, que são fugazes, pontuais e que vivemos, enquanto tais, sem nos preocuparmos com o amanhã. É verdade que a multidão em movimento e os movimentos de multidões induzem uma espécie de embriaguez. Repleta de solidão, como quem sai da agonia do orgasmo, o homem é filho da agonia e do gozo, para enfrentar os arrepios da vida, ocupa espaços vigorosos nos bordéis, nos cabarés de boleros e tangos, soluça nos dias cheios de luz vermelha, de beijos e de abraços, impregnados de bebidas, pintados em ângulos fechados, com uma tensão narrativa repleta de metáforas e de símbolos. Cada um à sua maneira, faz da existência que se vive aqui e agora, uma espécie de obra de arte. O que advém, já adveio, como uma maçã que não chega à boca porque as mãos o impedem.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

As asas do silêncio

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Suave como o véu que veste a noite, amarrotado no corpo de alguém. Demorado como as marcas do tempo acossadas na pele. Um pedaço de lua que se deita na cama e rebola nos sorrisos contorcidos para não cair de repente. No quarto, um perfume conhecido percorre-lhe o corpo, um paladar premeditado escapa-lhe ao olfacto. Só assim, a tocar...sem mais nada. No escuro das bocas cúmplices, como dos olhos fechados, o quarto ri-se devagarinho. Substâncias que se colam e se confundem, correntes de ar que passam para não morrermos de sede e sangue que muda de direcção sem aviso. Esperar. Como quem sobrevive na ponta fina dos dedos. O sabor doce do silêncio.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Toque com choque

Despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus. Induzir nos outros um amor por aquilo que amamos. Fazer do seu presente interior o seu futuro: eis uma tripla aventura como nenhuma outra.(George Steiner)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Post-corpo

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No post-pescoço, ainda se pressentem os post-beijos arranhados e amotinados pelos lábios frémitos do querer. Os post-joelhos, estremecem de uma ponta à outra em busca de umas post-mãos inflamadas pela ganância. Na post-cabeça, os pensamentos em tumulto, atropelam-se em post-agonia de tanta euforia em propensão. As post-pernas em desvario, procuram outras para se enroscarem desenfreadamente nos post-abraços esticados até à exaustão. O post-umbigo em sintonia com os post-olhos, puxa para dentro de si o post-mundo que acabou de sentir. Ao lado das post-línguas, ainda a escorrerem de emoção, está um post-coração à espera de se tornar post-humano.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

A boneca dos olhos de vidro

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Fechada naquela casa, brincava todos os dias com os dias, no tapete das horas acesas pelos fósforos. Nos dias às cores, enlaçava o seu sorriso carmim com ganchos às madeixas pretas dos seus cabelos de algodão. Repartia o coração ao meio e formava cortinas com os amores fervidos em lume brando. Nos dias a preto e branco, guardava as lágrimas de cristal delicadamente numa caixinha de veludo para não se partirem. Com os lábios tatuados pelas paixões desordenadas, lançava as desilusões atómicas ao vento e segurava as grades dos encontros com firmeza. Via-se ao espelho, no limiar da porta. Perdera a noção de tempo. Estava nua na sociedade organizada e vestida. Via o seu corpo adormecido, a cabeça encostada ao vidro derramava o êxtase de estar ali. As pessoas à sua volta, distraídas e apressadas num atordoador conjunto de espasmos simultâneos, insistiam em rasgar a pele com farpas frias até ao osso. Já sem rosto e sem alma, apercebeu-se de que tinha uns olhos de vidro. As lágrimas de cristal, essas, transformaram-se em pedra. Nada mais restava além do silêncio. E subitamente, um dia como um grito, um formidável dia, apenas abriu o trinco da porta e saiu. A claridade ofuscou-lhe as pestanas. Estilhaçou-se em pedaços. Uma luz pairou no céu como uma dupla estrela e logo se transformou em cristal colorido, cujas extremidades irradiava uma luz vermelha. Estava transformada. E porque dessa vez alcançara a metamorfose, a partir desse dia podia transformar-se no que quisesse. No brilho da cor, com diversos olhos e rostos, o seu coração batia, batia pelo momento (magicamente) pressentido.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Respirar debaixo da pele

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Debaixo da epiderme, há uns olhos profundos que se dissolvem em partículas perfumadas na boca dos outros. Abrem-se e fecham-se como persianas venezianas, onde pequenos sonhos esbracejam para entrar de pé na porta do absoluto. As mãos envoltas nos braços, tremem nos gestos e aconchegam-se em camadas no colo escolhido para alentar o fogo do desejo. Debaixo da hipoderme, há uma respiração ofegante, intensa, perdida nos corpos fluídos e sequiosa para sair. Afogueada, desce a escada da sorte à pressa e sobe o precipício do impossível. As palavras não encontram o ar e desfiam-se sufocadas, em insolúveis soluços, como um balde de tinta que escorre sobre as frinchas de uma parede gasta. No silêncio da derme, lambem-se os lábios e respira-se em surdina para não acordar as substâncias errantes das angústias, intoxicadas pelo pó dos afectos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

domingo, 3 de fevereiro de 2008

As lágrimas pretas das nuvens

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Truz truz, tum tum tum, tan tan. A janela do meu quarto acordou com os açoites fortes da senhora chuva, que batia incessantemente no vidro sem parar. Corro para ela e em silêncio espreito-a do lado de dentro. As nuvens estão tristes, carregam consigo os amores e desamores desenhados a lápis no céu. No desespero emocional, apertam-se umas às outras e contorcem-se em movimentos oblíquos de dor. Torcem as formas e distorcem os tamanhos. Crescem e decrescem consoante a angústia. Naquela luta imprudente, chateiam-se com o sol e empurram-no violentamente. Escureceu de repente. A alma negra das nuvens sangra lágrimas pretas. Lágrimas miudinhas que encharcam. Quando caiem em catadupa, arrefecem o sangue e congelam a pele dos corpos que caminham cá em baixo, desprotegidos. Quando tentamos abraçá-las com as pontas dos dedos, escorregam do fundo das mãos e caiem no colo, já despidas de emoção. Já fartas de tanto sangrarem, segredam umas às outras que está na hora de partir. De mãos dadas, trocam juras de amor eterno e despedem-se daquele momento. De novo apaixonadas, rodopiam em volta do sol e queimam-se no calor dos seus olhos. No final, o sol, velhaco, pisca o olho e esboça um enorme sorriso.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Eduarda, mãos de tesoura

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Costurava dia e noite sem parar, os retalhos da vida que ficaram por usar, nos dias demasiado frios e nas noites demasiado quentes. Quando chegava a hora de ir dormir, pegava na sua cestinha, cheia de fechos éclair, colchetes, velcros e pregadeiras de várias cores e tamanhos e aconchegava-a no colo até sentir o seu doce respirar. Dobrava sempre os tecidos, tantas quantas vezes fossem necessárias, até encontrar a medida certa. Apertava tanto as palavras com as mãos até sairem em ponto cruz pela boca. Desatava cuidadosamente os nós dos cabelos entrelaçados pelos dedos dele. Cosia os joelhos às pernas com fios de urdume para evitar que as mãos dele encontrassem os botões. Alinhavava a vida em brocados de cetim dourado ou prateado. Cortava enviesado o destino traçado a giz. Recortava o coração, ora pregueado, ora franzido ou simplesmente em godés. Tanto alfinete deixava-o sempre espartilhado. Já sem punhos de paciência, tirou a gola de plumas e costurou um cós, desde os ombros até aos quadris. Um dia...arrumou a máquina de costura e dedicou-se à jardinagem.

Corações solitários

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Saio do cinema. Não era um filme sobre a minha vida. Mas saio de lá absorta com os meus espíritos inquietos. Afago o meu casaco e percorro as ruas despidas à minha procura. Há uma luz quente, transbordante que me sacia. Olho para cima e fico hipnotizada com tamanha beleza. A lua está cheia, vestiu o seu melhor vestido de festa e orquestra uns compassos melódicos. E segue-nos lá cima com o seu olhar galante. Desço a rua sozinha e misturo-me no meio das pessoas, pressinto-lhes o cheiro adocicado dos corpos que vagueiam acoplados uns aos outros sem destino. Assusto-me com a sombra dos meus passos silenciosos. Ecos miudinhos dos saltos altos que segredam a calçada. Distancio-me de mim e acelero o passo. O relógio dos minutos e das horas não temporizadas sacudia-me o pulso de forma impaciente. Já estava atrasada. A noite estava em casa à minha espera, para uma conversa aquecida por uma chávena de chá fumegante e uma banda sonora em repeat.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O sangue do sol

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Debaixo dos corpos em chamas, os gestos estão petrificados de tanto o sangue sufocar as artérias. Os corações carnívoros, dilacerados, comem as emoções em redemoinho que gritam sem ar. As mãos estão coladas aos pés e as bocas estão coladas aos olhos, atravessando o mundo indivisível. Rastejam, rolam e rebolam pelos joelhos das horas e tropeçam no infinito. Nascem e renascem em desejos que se apagam e se acendem. Arranham as sensações instantes em eternos latejantes, que se engolem uns aos outros e transformam a lua em sol vivo e ardente.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os gostos de uns e as cores de outros

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Tempo branco, tempo de nenhuma paixão. Desce ao âmago desta cela. Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo — porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite (...) Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado. O teu corpo fundiu no silêncio do meu. Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo. Abandonamos a alma. Esquecemo-nos. Nada sentimos, nenhum acto se realiza. Nenhuma alegria ou tristeza. Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem. Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos. Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade. Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela. Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso. (Al Berto, in O Anjo Mudo)

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Conversas com os olhos

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Gosto de olhos conversadores. Olhos que falam, olhos que riem, olhos que choram. Olhos de várias cores, tamanhos e formas. Olhos que acordam de manhã ensonados, olhos que brilham ao pôr do sol, olhos que seduzem e encantam pela calada da noite. Olhos cúmplices, olhos penetrantes, olhos infinitos, olhos solitários que buscam outros olhos. Olhos que se cruzam e descruzam. Olhos que permanecem os mesmos. Olhos sinceros. Se os olhos são o espelho da alma, sou uma voyeur de almas. Gosto de observar como as almas se movem, como se agitam dentro dos corpos que carregam. Como se vestem e se despem das vidas passadas e futuras. Como se alastram por todos os cantos, matam e ressuscitam vontades insaciáveis. Como rastreiam o não vivido. Como consomem com voracidade alucinante e como degustam o querer para comer o prazer. São olhos que viajam, com algemas e correntes para aprisionar os seus deleites. São olhos lascivos, olhos de perdição. Quantos fitarei até encontrar os teus?

domingo, 13 de janeiro de 2008

Uma questão de pontuação

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Todas as histórias têm um início e um fim. A minha/tua história teve sempre um meio. Quando esperei virgulas, deste-me reticências. Quando esperei interrogações, deste-me exclamações. Quando esperava respostas não me fizeste perguntas. A seguir aos dois pontos, havia sempre um parêntesis. Agora já gastámos as palavras não ditas. E antes das palavras estarem gastas pela ausência de pontuação, tenho a certeza de que todas as palavras permaneciam apenas escritas no meu coração. Nunca as escreveste comigo. Sinto-me cansada. Sinto-me vazia. Não quero continuar a ler a mesma página gasta durante mais tempo. Não tenho forças para esperar o teu ponto final. Devias estar aqui comigo, rente aos meus lábios, para dividir esta amargura, dos meus dias partidos um a um. Adornei-me com os teus resquícios para esquecer a tua presença ausente. O passado é sangue coagulado nas crostas vincadas na memória. Quero ir além do que vivo. Surjo das cinzas e hei-de sempre voltar.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

À prova de morte

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No lusco-fusco dos dias, queremos trincar as pétalas de todas as flores, num desvario de nuvens apressadas. Numa correria desenfreada pelas estradas de areia sem alma, nem sequer abrimos as portas. Quando nada nos prende aos telhados das casas, os nossos cabelos ficam emaranhados nas teias de aranha onde em tempos nos havíamos perdido loucamente. Debaixo do chão do coração, existe sempre uma aranha a tecer melodramas em movimentos circulares, nos meus/teus telhados, nas tuas/minhas casas. Na cama do impossível, rolámos tantas vezes até doer, os teus/meus braços, as minhas/tuas pernas, os meus/teus cabelos, a minha/tua boca, os vincos das peles a pulsarem até ao infinito, os martelos do desejo dentro da minha/tua cabeça, sempre a tilintar pregos mais profundos. Os corpos já cansados de tanto se esfregarem, como se não houvesse amanhã, adormeceram e quando acordaram já não havia amanhã, porque a borracha fina, branca e preta do quotidiano fez questão de apagar ferozmente.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Insónia nocturna

A noite é densa, carregada de lágrimas quânticas que ardem quando caem. Ondas de energia invadem as minhas entranhas. Sou o vento que geme e quer entrar. Saboreio a saliva que me mastiga na suculenta escuridão. Sou inundada pela lascívia de poder tocar os abismos carnais, trazidos pela noite sombria para inebriar os meus pesadelos mais íntimos. Nua de todos os defeitos, arranquei as minhas asas por um instante, mergulhei em mim mesma e vagueei desnudada de pudor. De novo é dia. Ou não anoiteceu ainda. There are circles of forever, made of fire made of stone. There are circles of a lifetime, made of silver made of gold.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Control ou não

Não controlamos o que não queremos controlar. Não controlamos o que não podemos controlar. Não controlamos o que ficou por controlar. Não controlamos o incontrolável. No controlo dos não controlos, acabamos sempre descontrolados. Your confusion. My ilusion. Don't walk away in silence...