Costurava dia e noite sem parar, os retalhos da vida que ficaram por usar, nos dias demasiado frios e nas noites demasiado quentes. Quando chegava a hora de ir dormir, pegava na sua cestinha, cheia de fechos éclair, colchetes, velcros e pregadeiras de várias cores e tamanhos e aconchegava-a no colo até sentir o seu doce respirar. Dobrava sempre os tecidos, tantas quantas vezes fossem necessárias, até encontrar a medida certa. Apertava tanto as palavras com as mãos até sairem em ponto cruz pela boca. Desatava cuidadosamente os nós dos cabelos entrelaçados pelos dedos dele. Cosia os joelhos às pernas com fios de urdume para evitar que as mãos dele encontrassem os botões. Alinhavava a vida em brocados de cetim dourado ou prateado. Cortava enviesado o destino traçado a giz. Recortava o coração, ora pregueado, ora franzido ou simplesmente em godés. Tanto alfinete deixava-o sempre espartilhado. Já sem punhos de paciência, tirou a gola de plumas e costurou um cós, desde os ombros até aos quadris. Um dia...arrumou a máquina de costura e dedicou-se à jardinagem.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2008
Corações solitários
Saio do cinema. Não era um filme sobre a minha vida. Mas saio de lá absorta com os meus espíritos inquietos. Afago o meu casaco e percorro as ruas despidas à minha procura. Há uma luz quente, transbordante que me sacia. Olho para cima e fico hipnotizada com tamanha beleza. A lua está cheia, vestiu o seu melhor vestido de festa e orquestra uns compassos melódicos. E segue-nos lá cima com o seu olhar galante. Desço a rua sozinha e misturo-me no meio das pessoas, pressinto-lhes o cheiro adocicado dos corpos que vagueiam acoplados uns aos outros sem destino. Assusto-me com a sombra dos meus passos silenciosos. Ecos miudinhos dos saltos altos que segredam a calçada. Distancio-me de mim e acelero o passo. O relógio dos minutos e das horas não temporizadas sacudia-me o pulso de forma impaciente. Já estava atrasada. A noite estava em casa à minha espera, para uma conversa aquecida por uma chávena de chá fumegante e uma banda sonora em repeat.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
O sangue do sol
Debaixo dos corpos em chamas, os gestos estão petrificados de tanto o sangue sufocar as artérias. Os corações carnívoros, dilacerados, comem as emoções em redemoinho que gritam sem ar. As mãos estão coladas aos pés e as bocas estão coladas aos olhos, atravessando o mundo indivisível. Rastejam, rolam e rebolam pelos joelhos das horas e tropeçam no infinito. Nascem e renascem em desejos que se apagam e se acendem. Arranham as sensações instantes em eternos latejantes, que se engolem uns aos outros e transformam a lua em sol vivo e ardente.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2008
Os gostos de uns e as cores de outros
Tempo branco, tempo de nenhuma paixão. Desce ao âmago desta cela. Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo — porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite (...) Mas no fundo de mim carregas ao ombro uma chapa de aço, em forma de sol apagado. O teu corpo fundiu no silêncio do meu. Dormimos na espessura da poeira, e nela suspendemos o tempo. Abandonamos a alma. Esquecemo-nos. Nada sentimos, nenhum acto se realiza. Nenhuma alegria ou tristeza. Apenas matéria, matéria deixada à voragem dos escombros e da ferrugem. Agora podemos tocar, enlear, comprimir ou distender os corpos. Construir formas com eles e deixá-los, assim, numa melancólica eternidade. Longe do olhar dos outros, respiramos ao mesmo tempo - como uma só engrenagem, única e bela. Resquício de memória que se apaga lentamente, sem que ninguém dê por isso. (Al Berto, in O Anjo Mudo)
terça-feira, 15 de janeiro de 2008
Conversas com os olhos
Gosto de olhos conversadores. Olhos que falam, olhos que riem, olhos que choram. Olhos de várias cores, tamanhos e formas. Olhos que acordam de manhã ensonados, olhos que brilham ao pôr do sol, olhos que seduzem e encantam pela calada da noite. Olhos cúmplices, olhos penetrantes, olhos infinitos, olhos solitários que buscam outros olhos. Olhos que se cruzam e descruzam. Olhos que permanecem os mesmos. Olhos sinceros. Se os olhos são o espelho da alma, sou uma voyeur de almas. Gosto de observar como as almas se movem, como se agitam dentro dos corpos que carregam. Como se vestem e se despem das vidas passadas e futuras. Como se alastram por todos os cantos, matam e ressuscitam vontades insaciáveis. Como rastreiam o não vivido. Como consomem com voracidade alucinante e como degustam o querer para comer o prazer. São olhos que viajam, com algemas e correntes para aprisionar os seus deleites. São olhos lascivos, olhos de perdição. Quantos fitarei até encontrar os teus?
domingo, 13 de janeiro de 2008
Uma questão de pontuação
Todas as histórias têm um início e um fim. A minha/tua história teve sempre um meio. Quando esperei virgulas, deste-me reticências. Quando esperei interrogações, deste-me exclamações. Quando esperava respostas não me fizeste perguntas. A seguir aos dois pontos, havia sempre um parêntesis. Agora já gastámos as palavras não ditas. E antes das palavras estarem gastas pela ausência de pontuação, tenho a certeza de que todas as palavras permaneciam apenas escritas no meu coração. Nunca as escreveste comigo. Sinto-me cansada. Sinto-me vazia. Não quero continuar a ler a mesma página gasta durante mais tempo. Não tenho forças para esperar o teu ponto final. Devias estar aqui comigo, rente aos meus lábios, para dividir esta amargura, dos meus dias partidos um a um. Adornei-me com os teus resquícios para esquecer a tua presença ausente. O passado é sangue coagulado nas crostas vincadas na memória. Quero ir além do que vivo. Surjo das cinzas e hei-de sempre voltar.
terça-feira, 8 de janeiro de 2008
À prova de morte
No lusco-fusco dos dias, queremos trincar as pétalas de todas as flores, num desvario de nuvens apressadas. Numa correria desenfreada pelas estradas de areia sem alma, nem sequer abrimos as portas. Quando nada nos prende aos telhados das casas, os nossos cabelos ficam emaranhados nas teias de aranha onde em tempos nos havíamos perdido loucamente. Debaixo do chão do coração, existe sempre uma aranha a tecer melodramas em movimentos circulares, nos meus/teus telhados, nas tuas/minhas casas. Na cama do impossível, rolámos tantas vezes até doer, os teus/meus braços, as minhas/tuas pernas, os meus/teus cabelos, a minha/tua boca, os vincos das peles a pulsarem até ao infinito, os martelos do desejo dentro da minha/tua cabeça, sempre a tilintar pregos mais profundos. Os corpos já cansados de tanto se esfregarem, como se não houvesse amanhã, adormeceram e quando acordaram já não havia amanhã, porque a borracha fina, branca e preta do quotidiano fez questão de apagar ferozmente.
domingo, 6 de janeiro de 2008
Insónia nocturna
A noite é densa, carregada de lágrimas quânticas que ardem quando caem. Ondas de energia invadem as minhas entranhas. Sou o vento que geme e quer entrar. Saboreio a saliva que me mastiga na suculenta escuridão. Sou inundada pela lascívia de poder tocar os abismos carnais, trazidos pela noite sombria para inebriar os meus pesadelos mais íntimos. Nua de todos os defeitos, arranquei as minhas asas por um instante, mergulhei em mim mesma e vagueei desnudada de pudor. De novo é dia. Ou não anoiteceu ainda. There are circles of forever, made of fire made of stone. There are circles of a lifetime, made of silver made of gold.
sexta-feira, 4 de janeiro de 2008
Control ou não
Não controlamos o que não queremos controlar. Não controlamos o que não podemos controlar. Não controlamos o que ficou por controlar. Não controlamos o incontrolável. No controlo dos não controlos, acabamos sempre descontrolados. Your confusion. My ilusion. Don't walk away in silence...