quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Debaixo dos pés

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Perco-me para me encontrar. Encontro-me para me perder. Quando me encontro, volto a perder-me. Quando me perco, procuro encontrar-me. No caminho mais longo, encontro um mais perto. No caminho mais perto, vou pelo mais longo. Flutuo abaixo das camadas, degrau por degrau. Corro contra o tempo para sair. Quando chego à superfície, sopro-a violentamente para fora das grades. Empurro os muros para longe, para não me cairem em cima. Lanço uma escada para me segurar. Se tenho medo, tapo os olhos e olho para cima a seguir. Sento-me confortavelmente naquele pedaço de terra vazio e absorvo lentamente todo o ar que passa em sentido contrário. Se já escureceu, apanho boleia da lua. Se amanheceu, digo bom dia ao sol e ofereço-lhe um sumo de laranja. Vou descer, está na hora de ir trabalhar.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O vendedor de sapatos de algodão

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Talvez nem tenha nome. Ou sequer morada. Existe apenas no frémito da folhagem seca que caí das árvores aos magotes. Naquela rua estreita, sempre coalhada de gente e amarelada pelo tempo, habita um vendedor de sapatos de algodão. O seu riso é invisível, a sua voz é escura, o grito é de um pássaro que morde o bico por engano. As mulheres acotovelam-se e atropelam-se umas às outras para experimentarem os sapatos. Debruçadas em pontas nas suas formas paralelepípedas, caminham de cabeça erguida, sem verem que debaixo dos seus pés existem uns doces sapatos de algodão. Com tentáculos do mundo visível e invisível, os sapatos de algodão percorrem os pés nas calçadas empedradas, nas escarpas mais elevadas onde sombrios cavalos galoparam. Em ritmos lentos de violinos magistrais, o toque dos dedos delicados mistura-se com a seda carmim dos sapatos de algodão. Concubinos, viajantes de um mesmo sonho, abocanham em êxtase a pele que outrora os uniu.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A orgia da maçã

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Só se compreende bem uma época sentindo o seu odor. Inventamos um mundo cada vez que escrevemos. De facto, é cansativo querer dizer sempre a verdade de uma época. Os humores sociais e instintivos dizem mais do que muitos tratados científicos. A este Prometeísmo moderno está em vias de suceder a figura de Dionísio. Hedonismo ambiente, latente. Aquilo que for feito amanhã pouco importa, desde que se possa usufruir, aqui e agora. De facto o Dandismo é uma arte de viver feita de elegância, de prazer, de gozo, que conforta um ambiente erótico e que assegura a transição de um tipo de sociedade para outro. Momentos de intensidade dos quais sabemos, de uma maneira trágica, que são fugazes, pontuais e que vivemos, enquanto tais, sem nos preocuparmos com o amanhã. É verdade que a multidão em movimento e os movimentos de multidões induzem uma espécie de embriaguez. Repleta de solidão, como quem sai da agonia do orgasmo, o homem é filho da agonia e do gozo, para enfrentar os arrepios da vida, ocupa espaços vigorosos nos bordéis, nos cabarés de boleros e tangos, soluça nos dias cheios de luz vermelha, de beijos e de abraços, impregnados de bebidas, pintados em ângulos fechados, com uma tensão narrativa repleta de metáforas e de símbolos. Cada um à sua maneira, faz da existência que se vive aqui e agora, uma espécie de obra de arte. O que advém, já adveio, como uma maçã que não chega à boca porque as mãos o impedem.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

As asas do silêncio

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Suave como o véu que veste a noite, amarrotado no corpo de alguém. Demorado como as marcas do tempo acossadas na pele. Um pedaço de lua que se deita na cama e rebola nos sorrisos contorcidos para não cair de repente. No quarto, um perfume conhecido percorre-lhe o corpo, um paladar premeditado escapa-lhe ao olfacto. Só assim, a tocar...sem mais nada. No escuro das bocas cúmplices, como dos olhos fechados, o quarto ri-se devagarinho. Substâncias que se colam e se confundem, correntes de ar que passam para não morrermos de sede e sangue que muda de direcção sem aviso. Esperar. Como quem sobrevive na ponta fina dos dedos. O sabor doce do silêncio.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Toque com choque

Despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus. Induzir nos outros um amor por aquilo que amamos. Fazer do seu presente interior o seu futuro: eis uma tripla aventura como nenhuma outra.(George Steiner)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Post-corpo

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No post-pescoço, ainda se pressentem os post-beijos arranhados e amotinados pelos lábios frémitos do querer. Os post-joelhos, estremecem de uma ponta à outra em busca de umas post-mãos inflamadas pela ganância. Na post-cabeça, os pensamentos em tumulto, atropelam-se em post-agonia de tanta euforia em propensão. As post-pernas em desvario, procuram outras para se enroscarem desenfreadamente nos post-abraços esticados até à exaustão. O post-umbigo em sintonia com os post-olhos, puxa para dentro de si o post-mundo que acabou de sentir. Ao lado das post-línguas, ainda a escorrerem de emoção, está um post-coração à espera de se tornar post-humano.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

A boneca dos olhos de vidro

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Fechada naquela casa, brincava todos os dias com os dias, no tapete das horas acesas pelos fósforos. Nos dias às cores, enlaçava o seu sorriso carmim com ganchos às madeixas pretas dos seus cabelos de algodão. Repartia o coração ao meio e formava cortinas com os amores fervidos em lume brando. Nos dias a preto e branco, guardava as lágrimas de cristal delicadamente numa caixinha de veludo para não se partirem. Com os lábios tatuados pelas paixões desordenadas, lançava as desilusões atómicas ao vento e segurava as grades dos encontros com firmeza. Via-se ao espelho, no limiar da porta. Perdera a noção de tempo. Estava nua na sociedade organizada e vestida. Via o seu corpo adormecido, a cabeça encostada ao vidro derramava o êxtase de estar ali. As pessoas à sua volta, distraídas e apressadas num atordoador conjunto de espasmos simultâneos, insistiam em rasgar a pele com farpas frias até ao osso. Já sem rosto e sem alma, apercebeu-se de que tinha uns olhos de vidro. As lágrimas de cristal, essas, transformaram-se em pedra. Nada mais restava além do silêncio. E subitamente, um dia como um grito, um formidável dia, apenas abriu o trinco da porta e saiu. A claridade ofuscou-lhe as pestanas. Estilhaçou-se em pedaços. Uma luz pairou no céu como uma dupla estrela e logo se transformou em cristal colorido, cujas extremidades irradiava uma luz vermelha. Estava transformada. E porque dessa vez alcançara a metamorfose, a partir desse dia podia transformar-se no que quisesse. No brilho da cor, com diversos olhos e rostos, o seu coração batia, batia pelo momento (magicamente) pressentido.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Respirar debaixo da pele

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Debaixo da epiderme, há uns olhos profundos que se dissolvem em partículas perfumadas na boca dos outros. Abrem-se e fecham-se como persianas venezianas, onde pequenos sonhos esbracejam para entrar de pé na porta do absoluto. As mãos envoltas nos braços, tremem nos gestos e aconchegam-se em camadas no colo escolhido para alentar o fogo do desejo. Debaixo da hipoderme, há uma respiração ofegante, intensa, perdida nos corpos fluídos e sequiosa para sair. Afogueada, desce a escada da sorte à pressa e sobe o precipício do impossível. As palavras não encontram o ar e desfiam-se sufocadas, em insolúveis soluços, como um balde de tinta que escorre sobre as frinchas de uma parede gasta. No silêncio da derme, lambem-se os lábios e respira-se em surdina para não acordar as substâncias errantes das angústias, intoxicadas pelo pó dos afectos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

domingo, 3 de fevereiro de 2008

As lágrimas pretas das nuvens

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Truz truz, tum tum tum, tan tan. A janela do meu quarto acordou com os açoites fortes da senhora chuva, que batia incessantemente no vidro sem parar. Corro para ela e em silêncio espreito-a do lado de dentro. As nuvens estão tristes, carregam consigo os amores e desamores desenhados a lápis no céu. No desespero emocional, apertam-se umas às outras e contorcem-se em movimentos oblíquos de dor. Torcem as formas e distorcem os tamanhos. Crescem e decrescem consoante a angústia. Naquela luta imprudente, chateiam-se com o sol e empurram-no violentamente. Escureceu de repente. A alma negra das nuvens sangra lágrimas pretas. Lágrimas miudinhas que encharcam. Quando caiem em catadupa, arrefecem o sangue e congelam a pele dos corpos que caminham cá em baixo, desprotegidos. Quando tentamos abraçá-las com as pontas dos dedos, escorregam do fundo das mãos e caiem no colo, já despidas de emoção. Já fartas de tanto sangrarem, segredam umas às outras que está na hora de partir. De mãos dadas, trocam juras de amor eterno e despedem-se daquele momento. De novo apaixonadas, rodopiam em volta do sol e queimam-se no calor dos seus olhos. No final, o sol, velhaco, pisca o olho e esboça um enorme sorriso.