Ruas cheias de gente, mas vazias de pessoas. Transportes públicos cheios de ruído mas ausentes de voz nos olhares e nas palavras. Os olhares deixaram de se cruzar, as palavras deixaram de ser tocadas. Carruagens cheias de ciclopes em silêncio. O monopólio ideológico do presente quer proibir os sonhos. A pessoa humana, concebida para criar e para exercer a liberdade responsável sem medo, é chamada a enfrentar a sua época pela reafirmação do direito à criatividade, à privacidade, à diversidade e aos sonhos. Tudo se passa como se na sociedade de consenso manipulado a instalação do pensamento único tivesse transformado o espaço público num espaço mediático, onde sobressai um tirano invisível. Trata-se do individualismo que fragmenta, isola, aliena o colectivo, individualismo egocêntrico e narcísico, mas também, individualismo agressivo, na exacerbação da competitividade. Indivíduos reduzidos às suas competências técnicas actuais são inabitantes: não têm laços, não partilham nada, não habitam em lado nenhum. O silêncio é, aparentemente, o contrário da comunicação. O jogo metafórico da própria linguagem põe a invisibilidade do que ao olhar se oculta, ou é ocultado, a decorrer do que silencia a palavra e é portanto do registo do (in) audível. A palavra que dá a ver. Há olhares que são cegos sem a palavra. O silêncio é sempre de algo que se silencia, que se guarda em segredo. Relação com os outros, relação com o mundo, relação com o destino. O corpo individual como destino, o espaço onde se vive como destino. Há como que um ar de "gasto" no ar do tempo. É este, efectivamente, que convém pensar. Somos cada vez mais confrontados com uma espécie de êxtase social. Essa explosão multiforme da carapaça da identidade, deve ser posta em ligação com a importância acrescida dos sentidos e do sensível. Vibrar com o outro, sob as suas diversas formas. Dilatar as potencialidades do "eu" entra em correspondência com a vontade natural das coisas, sentir a ordem interior que as move, ir no sentido da sua propensão. A sombra de Dionísio espalha-se nas nossas megalópolis. Efervescências múltiplas, estremecimentos de diversas ordens, anomias inumeráveis e nomadismos diversos. Aristóteles nota que o arqueiro procura com o olhar um alvo para as suas setas e nós não o procuraríamos para a nossa vida? Não se pode escapar a uma vida que devemos finalmente viver. Nos sonhos, as imagens importunam o inconsciente individual e forçam-no a explodir e a sair da temporalidade linear e racional que caracteriza a actividade diurna. No quadro do ciclo, faz de cada dia um momento de intensidade, aquele em que o acontecimento vivido pontualmente não é senão o eco de um advento sempre e de novo advindo. Rebelião contra uma sociedade do tédio. Rebelião contra uma pseudovida programada, que apenas deixa pouco lugar à aventura e ao simples prazer de existir. Nesse trágico vital, a sucessão das vidas é precisamente o que constitui o sucesso da vida. É certo que é difícil viver. Mas é essa aspereza que dá todo o seu sal à vida intensa.
domingo, 2 de dezembro de 2007
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2 comentários:
Temperemos a vida então!
Deitemos fora instintos individualistas, tendências egocêntricas, vivências hedonistas...
Penso até que vou mostrar este teu texto a dois ciclopes que conheço... pode ser que com este teu texto tão bem escrito entendam o que há vidas lhes digo...
Beijos e boa semana para ti!
"Desobedeçamos". Temos que criar formas quotidianas de fazê-lo,que nos alegrem a vida.
Iluminai esses ciclopes, sweet redlight :)
Blackiss e boa semana também para ti!
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